sexta-feira, 21 de agosto de 2009

"OBRA-PRIMA DE ELOQÜENTE ESCAMOTEAÇÃO"

A publicação do "Syllabus" foi mal recebida por todos os governos e provocou incidentes em muitos lugares, alguns até graves, que revelavam o ódio dos revolucionários. Assim, em Nápoles e Palermo exemplares do documento foram queimados em praça pública.

As manifestações de apoio, no entanto, foram também numerosas e entusiastas. Em Turim, 15.000 católicos se reuniram para exprimir ao Papa sua gratidão. Em Viena, o Pe. Schrader lançou uma coleção de livros com o título "Der Papste und die modernen Ideen". Defendendo nessa obra as teses do "Syllabus", sua aceitação tornava clara a adesão da maioria do clero austríaco à orientação da Santa Sé. De 1865 a 1869, os "Stimmen aus der Maria Lach" publicaram uma série de artigos difundindo e explicando os ensinamentos pontifícios. Na Espanha, o "Pensamiento Español" tomava como lema a negação da 80ª proposição condenada: "O Pontífice Romano pode e deve se reconciliar e transigir com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna".

Em todos os países a luta se impunha. Mas, se não era possível a união dos fiéis contra o inimigo comum, o ambiente criado pelos ultramontanos impedia a maioria dos católicos liberais de tomar uma atitude de revolta aberta e declarada. Fato sintomático foi ocorrido em Munich. Doellinger, interpretando o pensamento doutrinário da escola de que era chefe, preparou um violento panfleto contra o "Syllabus". Seus amigos, percebendo a inoportunidade do livro, impediram a sua divulgação. Se hoje o conhecemos, isso se deve ao fato de Doellinger o ter publicado depois de sua apostasia. A divulgação do "Syllabus" tornara patente que, se em certas elites o catolicismo liberal tivera sucesso, a grande maioria dos católicos não o acompanharia em aventuras contra a Santa Sé.

Era natural, a essa altura, que as atenções se voltassem todas para a França. Lá é que se organizara a facção católico-liberal, lá estavam os seus chefes, e de lá tinham partido grandes ofensivas do movimento. Os católicos liberais, completamente desnorteados com a condenação, procurando febrilmente o modo de se revelarem, esperavam com ansiedade o pronunciamento dos líderes franceses. Isso explica o sucesso do livro de Mons. Dupanloup, "A convenção de 15 de setembro e a encíclica de 8 de dezembro". Era a tábua de salvação a que eles se podiam apegar, para não soçobrar definitivamente.

Mons. Dupanloup interpretava o "Syllabus" com a célebre distinção entre a tese e a hipótese. Distinção às vezes legítima, mas que só pode ser aplicada com o máximo cuidado. A tese é a verdade imutável, em toda sua pureza. A hipótese, sua aplicação concreta, leva em conta as condições da sociedade. A hipótese pode ser tolerada num momento dado, como uma concessão imposta pelos fatos; nunca, porém, substitui a tese. É apenas um mal menor, e a obrigação do católico é trabalhar para que cessem as contingências que não permitem a aplicação da tese, aceitando com tristeza a necessidade da hipótese. Mons. Dupanloup transforma as teses liberais em meras hipóteses, embora na realidade elas fossem exatamente a negação das teses católicas.

Elogiada por Montalembert como "uma obra prima de eloqüente escamoteação", essa obra era a única escapatória, bem fraca, e serviu apenas para reanimar os membros do grupo do Bispo de Orléans. Estes, obrigados a se moderar, a renunciar à política de colocar a Santa Sé diante do fato consumado e a ficar no terreno da hipótese, foram paulatinamente perdendo a pouca influência que ainda conservavam nos meios católicos.

O "Correspondant" — órgão dos chefes do catolicismo liberal, e por isso colocado no centro dos acontecimentos — teve um acréscimo de irradiação por ser alvo da curiosidade universal, ansiosa por conhecer sua reação. Isso não iludia, porém, os seus redatores mais conscientes. Eles sabiam que sua posição era insustentável, e que essa maior penetração não se dava nos meios católicos, justamente os que deviam ser mais atingidos pela revista. Por outro lado, o desacordo na redação era completo. Enquanto de Broglie, Augustin Cochin e outros recomendavam moderação, Montalembert, sempre fogoso, queria a todo custo voltar a forçar os acontecimentos, o que obrigou a revista a recusar um artigo de sua autoria.

Nos meios católicos, a grande maioria dos simpatizantes do movimento liberal não ficou no meio termo preconizado por Mons. Dupanloup. Alguns se aproximaram dos ultramontanos, como por exemplo a revista "Études", dirigida por jesuítas. Outros se reuniram em torno de Mons. Maret, que ia mais longe ainda que os católicos liberais. Considerava a própria tese como contingente, apresentando os postulados liberais como o feliz resultado do progresso da razão humana. Houve ainda os aderentes a grupos eclesiásticos que, numa última efervescência de galicanismo, combatiam e criticavam abertamente a Santa Sé.

O grupo reduzido do "Correspondant" não pôde nem sequer evitar o descrédito perante a opinião pública. Uma das primeiras conseqüências da "obra prima de eloqüente escamoteação", de Mons. Dupanloup, foi uma polêmica generalizada a respeito da distinção entre a tese e a hipótese. No emaranhado das discussões, o povo, ante as diferenças sutis que os católicos liberais eram obrigados a estabelecer, resumia bem o seu pensamento com a frase jocosa que então se espalhou: "A tese é queimar o Sr. Rotschild; a hipótese, jantar com ele".

O livro de Mons. Dupanloup conseguiu apenas amortecer o golpe que fora vibrado no catolicismo liberal. O "Syllabus" alertara os simpatizantes do movimento. Alguns se aproximaram do ultramontanismo; outros, abandonando a posição insustentável do "Correspondant", acentuaram seus erros, colocando-se nitidamente debaixo da condenação da Santa Sé. Na sua "Histoire réligieuse de la France contemporaine", Adrien Dansett, depois de narrar as resistências eclesiástica ao "Syllabus", conclui com a seguinte afirmação bem verdadeira: "É necessário não se enganar sobre a eficácia muito limitada dessas resistências eclesiásticas. Pio IX infligiu ao catolicismo liberal uma derrota da qual ele levará mais de doze anos para se reerguer. O poder de Roma se estende sem cessar; o grande sopro que exalta a autoridade pontifícia, e que leva a Igreja do galicanismo ao ultramontanismo, vai logo conduzir o papado a essa apoteose que será o Concílio do Vaticano".

De qualquer forma, porém, não deixa de ser verdade que a publicação da obra de Mons. Dupanloup salvou a vida do chamado liberalismo católico, permitindo-lhe esse reerguimento depois de um bom número de anos.

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