sábado, 22 de agosto de 2009

GARCIA MORENO, MODELO DO CHEFE DE ESTADO CATÓLICO (Celso da Costa Carvalho Vidigal, in "Catolicismo" — nº 160, 163, abril e julho de 1964)

O católico que deseja a instauração de uma sociedade inteiramente de acordo com a doutrina da Santa Igreja, indaga, entre muitas outras questões, quais as possibilidades que teria um chefe de governo católico de contribuir eficazmente para a formação de tal sociedade. A vida de Garcia Moreno é um exemplo que ajuda a responder tal pergunta.

Embora distante no tempo mais de um século, a atividade desse que foi o mais católico dos chefes de Estado deste hemisfério ensina aos homens de hoje importantes aplicações da doutrina da Igreja à arte de governar. As circunstâncias históricas que cercaram a vida do grande Presidente do Equador não o tornam tão distante de nós, e além do mais nos fazem próximos dele os princípios universais que constituíram a dominante de sua existência.

A consciência de uma vocação

Garcia Moreno desde jovem lutou por seus ideais. Ao contrário de muitos que enveredam pela política para satisfazer seus interesses, ainda que legítimos, o que fez o nosso personagem envolver-se ativamente na vida de seu país foram sempre os princípios que o norteavam. Certa vez, já Presidente, um de seus irmãos testemunhara a ingratidão de seus compatriotas. Por isso o exortava a deixar a pátria, oferecendo-lhe tantos recursos financeiros quantos desejasse, para levar uma vida despreocupada e tranqüila. Garcia Moreno respondeu: "Deus não me criou para fazer o bem em qualquer lugar, mas no Equador".

Essa consciência do dever diante de Deus, que amadureceu na alma de Garcia Moreno ao longo dos anos em que se dedicou a salvar o seu país da impiedade e da imoralidade, levou-o desde cedo a uma oposição ativa contra o governo do General Urbina.

Irritado com os violentos ataques que Garcia Moreno lhe fizera através do primeiro número de seu periódico "La Nación", lançado em 8 de março de 1853, Urbina mandou adverti-lo de que seria preso se ousasse publicar o segundo número. Não logrando êxito essa ameaça, a 15 de março foi consumada a violência, com a prisão de Garcia Moreno e dois companheiros, que foram imediatamente deportados para Nova Granada (a atual Colômbia), onde deveriam ser encarcerados pelo governo de Bogotá, do qual Urbina era títere.

A caminho, recolhidos à prisão de Pasto, cidade colombiana fronteiriça com o Equador, conseguiram os prisioneiros burlar a vigilância e evadir-se. Alguns dias depois, disfarçado, Garcia Moreno penetrava em Quito a fim de tentar levantar seus correligionários contra o ditador.

Pouco tempo bastou para perceber que seus amigos, os conservadores, não haviam ainda sofrido o suficiente para se rebelarem contra a tirania urbinista. Vendo que nada conseguia, retirou-se para o Peru, de onde passou a aguardar e apressar os acontecimentos. Seus amigos de Guaiaquil elegeram-no senador. Ao abrir-se a sessão parlamentar, Urbina não hesitou em mandar prender e deportar novamente para o Peru o adversário ostensivo de seu governo, violando dessa forma as imunidades que a constituição garantia ao eleito.

Anos de exílio

Exilado no Peru, vivendo na pequena cidade marítima de Payta, aguardou Garcia Moreno por dezoito meses que a situação de seus país se modificasse. Por fim, momentaneamente desesperançado, embarcou para a França a fim de dedicar-se a estudos.

Em Paris, sofreu o fenômeno de entibiamento, que tanto persegue aqueles que são chamados às grandes obras. Não que anteriormente trilhasse com segurança os caminhos do Evangelho. Quando anos antes defendera os jesuítas ameaçados de expulsão pelo governo equatoriano, confessara: "Sou católico, sinto-me orgulhoso de sê-lo, se bem que não possa ser contado no número dos cristãos mais fervorosos". Mas o ambiente parisiense, tão deletério em muitos aspectos, ia pouco a pouco privando-o do ardor apostólico que, apesar de tudo, o animava até então.

Um incidente providencial arrancou-o dessa vertente perigosa. Certo dia, um grupo de seus amigos atacava a Religião Católica, e ele pôs-se a defendê-la com veemência. Um dos interlocutores lançou-lhe em face:

— Falais bem, meu caro. Mas essa Religião tão bela, parece-me que negligenciais um pouco a sua prática. Quanto tempo faz que vos confessastes pela última vez?

Desconcertado um instante, respondeu:

— Retrucastes-me com um argumento pessoal, que pode vos parecer excelente hoje, mas que amanhã — dou-vos minha palavra — não valerá mais.

Deixando o local, recolheu-se a longa meditação, depois da qual foi diretamente confessar-se em uma igreja. No dia seguinte aproximava-se da mesa eucarística.

Retomou então seus hábitos de piedade, para nunca mais deixá-los. Quase todos os dias era visto na Missa. Rezava diariamente o terço, devoção que sua mãe lhe havia ensinado. Foi nessa época que empreendeu a leitura da "História da Igreja", de Rohrbacher, obra ultramontana que leu três vezes, e que o inspirou quando mais tarde procurou levar o seu país para os caminhos que a Divina Providência lhe apontara.

De volta ao Equador

No fim de 1856, Urbina foi substituído por Roblez na presidência. Como este procurava ganhar popularidade à custa de indulgência para com aqueles que seu antecessor e mestre havia perseguido, os amigos de Garcia Moreno lhe obtiveram um salvo-conduto para voltar ao Equador. Recebeu inúmeras homenagens logo ao chegar. A municipalidade de Quito nomeou-o alcaide, o que correspondia a juiz de primeira instância. Vagando a reitoria da Universidade de Quito, os professores o elegeram para o cargo, em cujo exercício soube dar àquela instituição de ensino um grande impulso, atuando com uma severidade que fazia com que os alunos se empenhassem nos estudos. Criou ali uma cadeira de química, da qual foi o primeiro professor.

Entretanto, não tinha outro objetivo senão o de implantar no Equador uma ordem de coisas que favorecesse a Religião. Assim sendo, achou que devia reingressar na política, candidatando-se ao senado. Para apoiar o partido oposicionista, que então organizou, em abril de 1857 fundou um novo jornal, "La Unión Nacional". Imediatamente passou a atacar os desmandos do governo e a fazer propaganda da oposição. Apesar do grande esforço de coação que o governo de Roblez exerceu, recorrendo até mesmo à pressão policial no momento da votação, a 15 de setembro seus esforços eram coroados de êxito, elegendo-se para o senado Garcia Moreno e candidatos do seu partido.

Durante os anos em que ocupou seu lugar no senado, teve Garcia Moreno muitas ocasiões de atacar o governo e as irregularidades administrativas que este praticava. Não perdeu também a oportunidade de apresentar projeto de lei proibindo a existência de lojas maçônicas no país, em nome da aversão que um Estado oficialmente católico, e com maioria absoluta de católicos, deve ter à seita.

Como resultado de sua ação vigilante contra um governo que se esmerava em atitudes anticristãs e despóticas, Roblez e Urbina tentaram assassiná-lo. O povo de Quito, sabendo da ameaça, cercou-o no momento em que deveria ser morto, ao sair do senado, não permitindo o atentado. Em desespero de causa, determinou o governo que os seus representantes no Congresso não mais comparecessem às sessões, vindo a faltar desse modo o quorum essencial aos debates. Roblez passou então a governar sem a colaboração das casas legislativas.

A essa altura dos acontecimentos já era grande o caos administrativo no país. Na falta de outros recursos para fazê-lo voltar à ordem, e com forte apoio da opinião pública, Roblez foi destituído, e a 1º de maio de 1859 formou-se um governo provisório do qual Garcia Moreno assumiu a chefia. Resultou daí uma ação armada, que durou cerca de quinze meses e terminou no dia 24 de setembro de 1860, com a tomada de Guaiaquil, último reduto do governo deposto. Coincidindo esta data com a festa de Nossa Senhora das Mercês, decretou Garcia Moreno que, para agradecer à Mãe do Divino Libertador, bem como para merecer sua assistência no futuro, o exército seria colocado sob a proteção especial de Nossa Senhora das Mercês. A cada ano, no dia desse grande aniversário, o governo e o exército assistiriam oficialmente às solenidade da Igreja.

Chefe de Estado

Terminada a campanha militar, restava ainda a batalha política a vencer. Contando com o apoio incondicional da opinião pública, Garcia Moreno tinha diante de si não só os seus adversários, mas ainda os seus aliados. Sobre a situação então reinante, diz o seu biógrafo Pe. A. Berthe:

"Cercado pelas repúblicas vizinhas, ciumentas umas das outras mas sempre prontas a se darem as mãos para sustentar os direitos da Revolução, o Equador não poderia aceitar a direção da Igreja sem levantar tempestades na Nova Granada e no Peru. No interior, todos os partidos enfatuados de idéias modernas bradariam traição.

"Os liberais, com efeito, não viam na Igreja senão uma escrava a serviço do Estado; os radicais maçons viam nela uma inimiga a destruir; os próprios católicos hesitavam, na maior parte, entre os direitos inalienáveis da Igreja e os pretensos direitos do povo. Partidários da conciliação à outrance, empenhavam-se em resolver o problema da Igreja livre no Estado livre, da mesma forma que outrora se procurava a quadratura do círculo.

"Esses elementos disparatados, Garcia Moreno tinha podido reuni-los um instante sob a bandeira da união nacional, por isso que o instinto de conservação material era suficiente para determinar os liberais e democratas a lhe prestarem apoio contra Urbina, o inimigo comum. Mas, excelentes para ganhar a batalha, as coligações apresentam graves inconvenientes no dia seguinte à vitória: cada um dos partidos ergue-se em toda a sua estatura e pede sua parte no produto da vitória, quando não o quer inteiro para si".

Essas considerações são suficientes para fazer conhecer o ambiente dentro do qual Garcia Moreno, chefe do governo provisório, iria procurar orientar o Equador para caminhos mais de acordo com a doutrina da Igreja.

Competia-lhe, em primeiro lugar, promover as eleições que dariam ao país uma Convenção Nacional, a qual por sua vez elaboraria a nova constituição e escolheria o novo presidente. Devia pois manobrar no sentido de obter que os eleitos fossem, na medida do possível, elementos que apoiassem as reformas que pretendia realizar. Para esse efeito, modificou a legislação eleitoral de modo a facilitar a eleição de pessoas católicas e honradas. Os políticos da oposição não deixaram de se manifestar contra essa reforma, mas as eleições processaram-se normalmente, atingindo os objetivos do chefe do governo.

Na sessão de abertura da Convenção Nacional, o governo provisório entregou a esta o poder, depois de ter-lhe prestado conta de seus atos. Garcia Moreno foi, no mesmo dia, eleito presidente interino, ao mesmo tempo que era confirmado o decreto que colocara o Equador sob a proteção da Virgem das Mercês. A unanimidade que sufragou essas duas decisões não impediu que logo após, ao começarem os debates que deveriam dotar o país de uma constituição, se patenteasse a profunda divergência entre os que, junto com Garcia Moreno, queriam que ela fosse católica, e de outro lado os que desejavam que não fosse mais que um reflexo das idéias liberais e positivistas, que já infeccionavam a maior parte das constituições dos novos Estados americanos.

Um grande reformador

Garcia Moreno queria dar ao Equador uma constituição visceralmente católica, como único meio de moralizar o país pela enérgica repressão do crime e pela educação sólida das jovens gerações, a fim de proteger a Religião e realizar as reformas que nem o governo nem as leis ordinárias podiam fazer por si mesmos. Isso dizia ele em sua mensagem presidencial de 1861. Mas, a fim de evitar cristalizações que poderiam fazer cair por terra seus planos, contentou-se, no começo, com impedir que fosse promulgada qualquer disposição capaz de paralisar a restauração católica que colimava.

A constituição votada dizia, logo de início, que a Religião Católica Apostólica Romana era a Religião do Estado, com exclusão de qualquer outra. Essa declaração não era novidade nas repúblicas americanas; mas os legisladores não costumavam tirar daí todas as conseqüências, bastando dizer que, por liberalismo, em geral restringiam muito os poderes presidenciais, privando o chefe do Estado dos meios essenciais à manutenção da ordem de qualquer sociedade.

Aprovada a constituição, Garcia Moreno foi eleito presidente, mas sentiu-se na obrigação de recusar o cargo, por julgá-lo com poderes insuficientes para atingir os objetivos que tinha em vista. Com a intervenção de amigos, contudo, acedeu, assumindo a presidência. Para lhe manifestar sua boa vontade, os deputados aprovaram diversas leis orgânicas que permitiriam ao novo chefe do governo realizar muitos dos planos que a constituição aparentemente obstava. Uma dessas leis determinava que o presidente proporia uma concordata ao Soberano Pontífice, a qual seria posta em execução independentemente de ratificação do futuro congresso. Por essa porta aberta iria Garcia Moreno fazer passar todas as liberdades da Igreja, que a constituição não reconhecia.

O grande estadista desenvolveu enorme atividade, promovendo a restauração administrativa, financeira, do exército, da instrução pública e de outros setores da vida nacional. Só por essa atuação já se teria tornado digno da gratidão de seus compatriotas. Mais importante, no entanto, foi a concordata por ele proposta e assinada com a Santa Sé, e que possibilitou a reforma religiosa e conseqüente reforma moral da nação equatoriana.

Ao assumir pela primeira vez o governo do Equador, Garcia Moreno estava convencido da necessidade de devolver à Igreja o que os liberais lhe haviam usurpado. Sua vontade chocara-se com a dos convencionais que o haviam eleito, os quais não tiveram coragem suficiente para enfrentar a ira sectária dos radicais, e assim não consentiram em incluir na constituição os artigos necessários para dar à Igreja a posição que Garcia Moreno desejava assegurar-lhe em relação ao Estado equatoriano. Mas outorgaram ao presidente poderes para celebrar uma concordata com a Santa Sé, independentemente de aprovação legislativa.

A concordata e a reforma das ordens religiosas

O enviado plenipotenciário escolhido para negociar as condições da concordata com o Papa Pio IX foi o então Arcediago de Cuenca, Dom Ignacio Ordoñez. Em síntese, foram as seguintes as instruções básicas que ele recebeu para levar a termo sua missão:

1) O governo do Equador não quer impor à Igreja condições, mas tão somente suplica que a Igreja o atenda, pondo fim aos males que a desolam no país;

2) Convém que sejam proscritas todas as sociedades condenadas pela Igreja;

3) Deve ser supresso o exequatur, ou seja, a sanção da autoridade civil para dar validade aos atos pontifícios;

4) Os bispos devem ter poder de requerer, e o governo de exigir, que sejam banidos das escolas todos os livros e doutrinas condenados pela Igreja;

5) Deve ser supresso o apelo dos clérigos aos tribunais civis contra decisões de tribunais eclesiásticos;

6) Deve ser restabelecido o foro eclesiástico para os delitos de direito comum eventualmente praticados por clérigos;

7) Deve cessar a interferência da autoridade civil no provimento de cargos eclesiásticos;

8) O Estado deverá devolver os bens da Igreja.

Encerrava-se esta lista por uma instrução que esclarecia ser indispensável a reforma das Ordens religiosas que tinham degenerado no país, de modo que elas retomassem a vida regular, ou senão desaparecessem, deixando de escandalizar o povo. Pedia ainda Garcia Moreno que se mandasse ao Equador um núncio com poderes suficientes para promover tal reforma.

Depois de seis meses de negociações, o projeto de concordata foi assinado em Roma ad refendum do governo equatoriano, devendo a assinatura do documento definitivo ter lugar em Quito. Encarregado por Pio IX de representar a Santa Sé nesse ato, Monsenhor Tavani partiu para o Equador levando uma carta do Sumo Pontífice, em que felicitava Garcia Moreno por "sua piedade profunda para com a Santa Sé, por seu zelo ardente pelos interesses da Igreja Católica", e o exortava a "favorecer com todas as suas forças a plena liberdade da Esposa de Cristo, assim como a difusão dos divinos ensinamentos sobre os quais repousam a paz e a felicidade dos povos".

Tomando conhecimento da concordata, soube Garcia Moreno, ao mesmo tempo, que o Santo Padre não se dispusera a promover a reforma do clero regular da maneira cominatória que lhe fora proposta, mas sim por meios suasórios. Determinou então que seu enviado, Monsenhor Ordoñez, voltasse imediatamente a Roma para dizer ao Papa que o Presidente aceitava todos os artigos da concordata, mas que não era capaz de impô-la se a Santa Sé não impusesse a reforma aos religiosos.

Quando Monsenhor Ordoñez lhe transmitiu essa mensagem de Garcia Moreno, Pio IX insistiu: "Quero a reforma, como ele, mas não pelos mesmos meios". Ao que o prelado redargüiu, respeitosamente mas com firmeza: "O Presidente assevera que, se Vossa Santidade conhecesse a situação como ele, veria que os meios propostos são os únicos eficazes. Sem a reforma — e reforma sem demora — a execução da concordata é impossível".

Convencido graças a essa atitude ao mesmo tempo firme e filial do Presidente, Pio IX concedeu plenos poderes a Monsenhor Tavani para atingir os objetivos apontados por Garcia Moreno. Munido assim dos meios que havia solicitado à Santa Sé, pôde este promover a regeneração do clero em seu país, não obstante todo o furor maçônico que se elevou em defesa dos religiosos prevaricadores, que em sua maior parte preferiram secularizar-se ou emigrar. Contudo, aqueles que aceitaram as novas condições de vida impostas por Roma transformaram-se em um poderoso estímulo de disciplina e de virtude para o povo equatoriano.

Tinha o apoio maciço do povo

A concordata foi ratificada a 22 de abril de 1853. No mesmo ano, no mês de agosto, abriu-se a nova sessão legislativa (o que, nos termos da constituição, ocorria a cada dois anos). Irritados pela deferência filial que o governo de Garcia Moreno mostrava para com a Igreja, os radicais souberam capitalizar o apoio dos liberais para desenvolver uma ampla ação contra o presidente. Este, desanimado com essa atitude dos deputados, que — ao contrário do povo, que lhe dispensava apoio maciço — não reconheciam seu imenso esforço de salvação do país, ofereceu ao Congresso sua demissão, caso este insistisse em combater as medidas de saneamento que ele vinha executando, à frente das quais estava a reforma religiosa.

Não aceitaram os deputados a solução ofertada, receando as conseqüências imediatas que ela poderia ter no plano internacional, especialmente com relação a Nova Granada (Colômbia), cujo governo estudava os meios de anexar o Equador. Contudo, votaram as duas câmaras uma lei que determinava a reforma da concordata, lei essa que Garcia Moreno não sancionou por julgá-la contrária aos interesses da nação. Mais do que isso, porque feria os direitos inalienáveis da Igreja.

Ainda outras vezes, durante esse seu primeiro mandato presidencial, quis Garcia Moreno abrir mão do cargo, o que não aconteceu devido à resistência daqueles que viam nele o único obstáculo oposto à desordem transformada em sistema, que os liberais desejavam implantar, e o único homem capaz de dirigir o país com autoridade e com justiça, de modo a assegurar ao Equador a paz e a prosperidade que várias administrações danosas lhe haviam negado. Assim, apesar de vários atentados contra sua vida, e das revoltas deflagradas por elementos radicais inimigos da Fé, e apoiadas militarmente pelos governos peruano e colombiano, o grande presidente chegou ao término de seu mandato, tendo reposto o país em completa tranqüilidade.

Atitude débil dos sucessores

O Presidente Carrion, eleito pelos conservadores para sucedê-lo, não soube continuar sua ação firme e prudente. Cioso de demonstrar com relação a Garcia Moreno uma independência que nada justificava, escolheu para ministro do interior um liberal inimigo do seu ilustre antecessor. Querendo com isso parecer grande, tornou-se pequeno, pois desde o início os radicais perceberam que essa atitude de congraçamento entre conservadores e liberais, ao invés de fortalecer o governo, antes o debilitava, forçando-o a fazer concessões à desordem pregada e promovida pelo partido liberal. A conseqüência dessa política que começava débil foi o renascimento de uma propaganda revolucionária que se avolumou mês a mês, até levar Carrion a pedir demissão em 6 de novembro de 1867.

Indicado por Garcia Moreno, foi lançado como candidato à sucessão o advogado Javier Espinosa. Convocadas imediatamente as eleições pelo vice-presidente, não tiveram os radicais sequer coragem de opor outro candidato a Espinosa, tal o prestígio que o patrono de sua candidatura lhe conferia. Eleito sem oposição, assumiu Espinosa o poder pelos dezoito meses que faltavam para completar o período presidencial. Seu governo consistiu na mesma sucessão de erros que haviam provocado a queda de Carrion, e teve um fim análogo.

Observe-se aqui um fato singular. Tanto Carrion como Espinosa pertenciam ao partido conservador; tanto um como outro foram indicados por Garcia Moreno; ambos afastaram-se deste para exercer um governo do qual não pudesse ser dito que era influenciado pelo líder natural do partido e do Equador; e os dois tiveram de deixar o cargo antes de cumprido o mandato, por terem-se aliado ao partido liberal, cujas tendências, cuja filosofia e cujos métodos de ação, ao invés de lhe darem força, antes enfraqueciam aqueles a quem apoiava.

Um grande administrador

Em face da ampla liberdade que o governo de Espinosa dava aos radicais, estes tornaram-se cada vez mais ousados. Ao se aproximarem novas eleições, em que Garcia Moreno seria certamente eleito para um segundo período, resolveram eles derrubar Espinosa, tomando conta do poder e evitando assim o que seria, para a facção, uma nova catástrofe eleitoral e política. Prevenidos a tempo desse plano e da data em que seria levado a efeito, puderam Garcia Moreno e seus amigos levantar o exército dois dias antes. Depondo o governo, asseguraram a ordem no país inteiro, desbaratando o movimento radical. Assumiu então a presidência o próprio Garcia Moreno, que desde logo declarou que iria convocar uma Convenção nacional para promover a reforma da constituição, transformando-a em um instrumento apto a promover a ordem e a justiça. Desta vez estava bem decidido a realizar a obra de civilização católica, da qual pudera apenas fixar as bases quando de seu primeiro período de governo. Ao mesmo tempo, anunciou que não aceitaria sua eleição para a presidência no período que estava para se iniciar, tornando com isso evidente o seu desapego de qualquer posição ou mandato.

Assumindo novamente a direção do país, como primeira medida Garcia Moreno revogou certas limitações que seus antecessores haviam imposto à execução da concordata que ele havia assinado com Roma. Logo após, promoveu a convocação da Convenção nacional, que deveria elaborar a nova constituição e escolher o novo presidente. Eleita e empossada a nova assembléia constituinte, depôs nas mãos desta o cargo que assumira em um momento difícil. Os convencionais não hesitaram em eleger para substituí-lo, como presidente interino, o seu próprio cunhado, Manuel Ascasubi, o qual o nomeou imediatamente seu ministro das finanças.

A Convenção, querendo pagar uma dívida de gratidão para com quem tantas vezes dirigira com êxito as forças militares do país, ainda nomeou Garcia Moreno general em chefe do exército. Ao receber comunicação desse fato, ele respondeu que aceitava o cargo para "continuar a defender a Religião e a pátria", e que contava "com a cooperação do povo, o valor e a lealdade do exército, e sobretudo com a proteção da Providência".

Depois a Convenção iniciou os debates sobre a constituição, dos quais resultou a rápida aprovação do projeto preparado por Garcia Moreno e defendido por ele mesmo, que, na qualidade de ministro, comparecia à assembléia para sustentar seus pontos de vista. Isso fez com que o texto definitivo não apresentasse senão pequenas modificações com relação ao original. Passou-se então à eleição do presidente. Diante da declaração solene que Garcia Moreno havia feito, de que não aceitaria o lugar, tudo levava a crer que haveria um impasse; não se deixaram os congressistas inibir por isso. Ao se reunirem para a eleição, deram ao grande estadista todos os votos menos um. A princípio firme em sua deliberação, por fim Garcia Moreno teve de aceitar essa escolha que era feita com o intuito de tornar possível a execução de uma carta constitucional que — a experiência o provava — outro não seria capaz de fazer cumprir.

Vale aqui mencionar alguns dos dispositivos especificamente católicos da nova lei magna. Começava por dizer: "Em nome de Deus Uno e Trino, autor, conservador e legislador do universo, a Convenção Nacional decretou a presente constituição". Mais adiante estabelecia que não pode ser eleitor, não é elegível nem pode ser funcionário de qualquer categoria quem não professar a Religião Católica. E declarava que perdia seus direitos de cidadão todo indivíduo que pertencesse a uma sociedade proibida pela Igreja. Consagrando o que já havia sido estabelecido na concordata, a constituição punha um freio definitivo a qualquer tentativa do poder civil de se imiscuir nos negócios exclusivamente religiosos.

Com a nova constituição pôde Garcia Moreno executar a obra de regeneração do Equador, que se havia proposto. Tivera o cuidado de incluir no texto constitucional dois dispositivos que lhe permitiriam exercer uma ação eficaz e duradoura: o mandato presidencial estender-se-ia por seis anos, podendo haver reeleição por uma vez, e o presidente teria a faculdade de vetar as leis aprovadas pelo Congresso, que não poderiam ser objeto de nova deliberação por parte deste antes de dois anos.

Muito longo seria enumerar as realizações administrativas desse segundo período de governo. Deve-se contudo mencionar que a nação, respeitosa dos direitos de Deus e dirigida por um chefe de valor excepcional, entrou numa fase de grande desenvolvimento, como ainda não se vira em nenhuma república sul-americana.

Em defesa dos direitos do Papa-rei

Um dos fatos notáveis desse período foi a consagração do Equador ao Sagrado Coração de Jesus, a pedido do Presidente, feita pelo III Concílio de Quito. Dizia a proclamação respectiva que o maior bem de um povo é conservar intacta a Fé Católica Apostólica Romana; que esse bem depende, não de nossos méritos, mas da misericórdia de Deus; que a nação o obterá se se lançar com humildade no Coração de Jesus. Em conseqüência, o Concílio de Quito oferece e consagra solenemente a República ao Sagrado Coração, suplicando-Lhe que seja seu protetor, seu guia e seu defensor, a fim de que ela jamais se afaste da Fé Católica Apostólica Romana, e que os habitantes do Equador, conformando sua vida a essa fé, encontrem nela a felicidade no tempo e na eternidade.

Enquanto essa jovem república se elevava aos olhos de Deus, na Itália Vitorio Emanuel, Rei do Piemonte, instigado por seus conselheiros maçons, invadia e pilhava Roma, privando o Santo Padre do seu poder temporal. Dirigiu Garcia Moreno enérgica advertência ao governo piemontês, dizendo que, não tendo havido nenhuma manifestação de nação mais autorizada, o Equador, embora pequeno e distante, protestava contra o ignóbil atentado e esperava que o Rei do Piemonte repararia os deploráveis efeitos de um momento de vertigem, antes que o trono de seus augustos antepassados fosse reduzido a cinzas pelo fogo vingador das revoluções.

O Presidente mandou cópia de seu protesto a todas as demais repúblicas sul-americanas, pedindo que fizessem o mesmo, mas não encontrou eco. Não satisfeito com isso, Garcia Moreno fez votar uma lei outorgando um donativo vultoso ao Papa, pois este, privado de suas rendas, teria de enfrentar graves dificuldades financeiras.

Na carta de agradecimento que Pio IX lhe enviou, estão palavras que consagram o governo desse modelo de estadista católico:

"Não sabemos se Nossas ações de graças devem ter por objeto as provas de vossa insigne devoção para coNosco, mais do que os favores com que Deus Se compraz em vos recompensar. Com efeito, sem uma intervenção divina toda especial, seria bem difícil compreender como, em tão pouco tempo, restabelecestes a paz, pagastes uma parte notável da dívida pública, dobrastes as rendas, suprimistes os impostos vexatórios, restaurastes o ensino, criastes estradas, asilos, hospitais.

"Mas, acima de tudo, Nós vos felicitamos pela piedade com que atribuís a Deus e à Igreja todos os vossos êxitos, persuadido de que sem a moralidade, de que somente a Igreja Católica ensina e mantém os preceitos, não poderia haver para os povos verdadeiro progresso".

Garcia Moreno morreu assassinado na escadaria da catedral de Quito, poucos dias antes da data em que deveria assumir a presidência por mais um período, para o qual havia sido reeleito. Sua morte foi a realização de um intento que havia muitos anos era acalentado pela maçonaria, a qual nada poupou para atingir esse seu infame objetivo. Deus terá em sua glória esse estadista autenticamente católico, a quem uma das menores nações da América deve a honra de ter-se tornado — no meio de um século laicizante, que destruiu altares e profanou a própria capital da Cristandade — a maior expressão da ação da graça divina na sociedade civil.

(Celso da Costa Carvalho Vidigal, in "Catolicismo" — nº 160, 163, abril e julho de 1964)

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